“Um Deus-morcego. O símbolo que me inspirou a me tornar
Batman”. Esse pensamento de Bruce Wayne pode levar o leitor a questionar-se:
“Ué, mas que Deus-morcego é esse? Nunca vi menção a isso”. No selo Eastwood ou Túnel do Tempo da DC Comics, os heróis são colocados em uma linha
temporal diferente: guerra de secessão, fim do século XIX, etc. A intenção é
pensar como seria se certos personagens tivessem nascido em outro contexto. No
gibi Batman: O livro dos Mortos, não
foi a queda em um buraco no quintal ou um morcego entrando na sala que inspirou
Bruce Wayne a criar um uniforme baseado no mamífero voador, mas sim a mitologia perdida de um Deus-morcego.
20 anos atrás: Thomas
e Martha Wayne são arqueólogos que se debruçaram no estudo das pirâmides do
Egito. Em seus trabalhos encontraram um artefato que poderá mudar tudo o que se
sabia na egiptologia. No entanto, também percebem que três mortes ocorridas no
Cairo não foram acidentais e estava relacionada a descoberta que fizeram. Apesar
do novo achado ser fascinante, ambos se dão conta do perigo que os espera.
Thomas, então, diz “Nós descobrimos algo importante demais. E se você acha que
devemos desistir é só dizer, Martha” e como resposta ouve, de sua esposa, “Eu
vou reservar nosso voo pro Cairo amanhã”.
14000 anos atrás: Os
deuses egípcios estão na Terra e percebem que em breve o planeta conhecerá uma
destruição causada por um grande dilúvio. Tendo isso em mente, deixam várias
construções (como as Pirâmides) e
pretendem deixar conhecimento para que a humanidade, no futuro, aprenda sozinha
a usar a tecnologia e o saber ofertado para salvar a Terra quando surgirem
outras precessões. “Então, devemos deixar este mundo esperando que nosso legado
não se perca”, lamentou Osíris e ouviu de sua esposa, a deusa Ísis, “Ele será
preservado, meu marido. Um registro completo de nosso conhecimento será deixado
como dádiva aos descendentes dos que sobreviverem no cataclismo”. Contudo, Set
em conjunto com Nekhrun, prepara um plano para frustrar o sonho de Osíris.
Dr. Ramsey e Bruce Wayne |
Dias atuais: Bruce Wayne, ao ler o jornal pela manhã, se
para com uma manchete “Deus-morcego egípcio apagado da história”. Na imagem vê
o símbolo de um morcego representando o deus (que é o mesmo que ele utiliza em seu peito quando se veste de Batman).
Com isso, recorda que a morte de seus pais esteve ligada a uma descoberta
misteriosa e que a mansão dos Wayne havia sido revirada na mesma noite do crime,
sem que nada de valor tivesse sido levado. Provavelmente estavam procurando o
cartucho do Deus-morcego, que o menino Wayne, por curiosidade, havia escondido.
Então, Bruce decide convidar a egiptóloga Dr. Ramsey a ir a sua casa. Após o
encontro dos dois e Dr. Ramsey explicar sua teoria, o bilionário de Gotham,
fingindo ser um simples curioso a procura de um hobby, decide financiar e ajudar
a pesquisadora a encontrar o que falta para provar a teoria. Após desenvolver tecnologia
para explorar as pirâmides, Bruce Wayne e Dr. Ramsey viajam ao Egito. Nem sabem
(Wayne desconfia), mas encontrarão
bastante aventura e mistério no decorrer da jornada.
Nekhhrun, o Deus-morcego |
Doug Moench, roteirista da história, criou Nekhrun, o
avatar das trevas que é capaz de fazer qualquer obra maligna e, conforme
aparece na história, para as trevas (nesse
caso, as trevas são representadas como algo ruim). Contudo, Nekhrun desiste de ajudar Set no seu plano contra Osíris e passa para o lado da luz (representado como algo bom, o lado do bem).
Durante a história (14000 anos atrás), Nekhrun passa de ser capaz de fazer qualquer mal para um deus das trevas que
assume atitudes nobres. Nas palavras de Ísis “Nekhrun agora segue a trilha das
trevas apenas para servir a sua luz”. Se trata de uma reconfiguração que, após
milhares de anos, dará origem, em Gotham City, a um super-heróis das trevas que
luta para combater o crime. Nesse sentido, Nekhrun virou um arquétipo que
perdurou por séculos e chegou até Bruce Wayne num momento de conflito. Sendo
assim, a história também pode ser compreendida como um retorno de Batman (Bruce Wayne) a si mesmo (Nekhrun), já que foi a morte desse
Deus das trevas que acabou motivando a morte de Thomas e Martha Wayne (haviam descoberto a existência de um
Deus-morcego no Egito Antigo).
Doug Moench é um excelente roteirista e foi, inclusive,
criador do Bane, juntamente com Chuck Dixon e Graham Nolan. Em Batman: o Livro dos Mortos, conduz um
roteiro interessantíssimo, com narrativa não-linear dos acontecimentos,
intercalando-os e criando sintonia nos “dias
atuais” com “14000 anos atrás”.
Confesso que não me interesso por teorias da conspiração e nem por teorias de
deuses astronautas, que são elementos que Moench utilizou para “recontar” outra mitologia para o Egito
Antigo e as pirâmides. As pirâmides, no gibi, não são túmulos nem construções
dos faraós, mas sim enigmas que revelam algo maior. No entanto, o quadrinho não
ficou enfadonho e me conquistou enquanto leitor. O Batman, apesar de ter origem
“mística”, se parece muito com o
herói que estamos habituados a ver. Ele ainda é novo, nem chegou aos 40 anos de
idade. O morcegão aparece pouco, mas convence e sempre se mostra em forma e bem
preparado para tudo. Bruce Wayne está na maior parte do tempo presente e é um
excelente detetive, costuma ficar atento e costura com maestria as pistas
encontradas, porém, se contém demais a fim de parecer, à vista dos outros, apenas
um bilionário que procura aventura.
Batman em ação |
No entanto, nem tudo são flores. Doug Moench deixou algumas
pontas soltas sem explicação. Por exemplo, não fica claro o porquê que vários
governos, que sabem da existência do “segredo”
dos deuses não querem ninguém investigando as pirâmides e, ainda por cima,
o que motivou o assassino dos pais de Bruce Wayne e, depois, o porquê que o vilão
que Batman enfrentou no fim, estava tão interessado em impedir que qualquer conhecimento
vazasse. Além disso, os deuses egípcios poderiam ser mais aproveitados. Nem há
ação nas lutas envolvendo esses seres e, inclusive, alguns deles foram
pessimamente explorados, como Anúbis, que é medroso e Sobek, que promete ação
e não faz nada. Já os desenhos, que ficaram por conta de Barry Kitson, são bons
ao retratar os dias atuais (pouco antes do ano 2000) mas deixam a desejar ao representar
o Egito Antigo e os deuses. Na própria história fica explícita a magnificência
das pirâmides na narrativa, mas nenhum ângulo ressaltando sua grandeza foi
desenhado e pouco mostrou outras construções da antiguidade egípcia (apenas algumas estruturas tecnológicas para
evidenciar o status avançado da tecnologia dos deuses).
No entanto, os problemas são pontuais e não interferem no
desenrolar da história justamente pela dinamicidade e ritmo do roteiro de Doug
Moench. É uma história em quadrinhos razoável, interessante para quem queira
conhecer as diferentes retratações do Batman. No que diz respeito a fatos
históricos, nada se pode aproveitar (apenas
o nome de alguns arqueólogos que aparece na história), pois Moench baseou o
roteiro em teorias da conspiração e deuses astronautas, sendo assim, há discos
voadores, tem alteração nas datas das construções das pirâmides e nada se
aborda sobre a cultura de um povo que, além de ter grande importância histórica,
também mexe, ainda hoje, muito com a imaginação das pessoas. Porém, quem gosta
de histórias com mistérios e filmes estilo The
Mummy (1999 e 2017) e The Mummy Returns (2001) vai adorar.
A região na qual o Egito está localizado foi muito impactada
pela presença do rio Nilo, já que “[...] fornece a este oásis de desmesurado
comprimento, situado em pleno clima saariano, água e terra cultivável, graças à
sua inundação notavelmente regular e rica em húmus”[1].
Atualmente, é muito conhecido por causa das pirâmides (inclusive, a pirâmide de Gizé está na lista das Sete Maravilhas do
Mundo), por sua religião e as técnicas de mumificação.
Muitas vezes ao olharmos para determinadas culturas do
passado, ou mesmo atuais, acabamos deixando que nossas concepções do presente
alterem os significados das construções, ritos e práticas do passado. Cometemos
anacronismos (imputar pensamentos,
conceitos, atitudes a pessoas de períodos que desconheciam determinados valores)
ou adotamos posturas etnocêntricas (avaliar
outras culturas a partir de seus valores e desqualifica-las quando divergem do
seu ideal). Vem daí o esforço para encontrar menção a discos voadores (as famosas naves dos E.T. tão famosas nos
filmes) em pinturas antigas, desenhos sendo interpretados como representando
o que atualmente indicamos como formas alienígenas (crânios alongados, olhos grandes, etc). A partir disso, teorias conspiratórias
são criadas e até seres de outros planetas são imputados como ofertantes de
saberes que afirmamos não estar à altura de povos antigos.
No que se refere ao Egito Antigo, atualmente há diversos estudos
que explicam muitas coisas que as teorias conspiratórias afirmam não existir,
inclusive, no próprio gibi do Batman, a Dr. Sheila Ramsey assegura que “os
egípcios não ergueram esses monumentos. Até hoje, ninguém sabe como eles
poderiam ter feito. Existem teorias aos montes, mas há falhas em todas”. No
vídeo “Arquitetura egípcia/ Pirâmides, moradias e o Vale dos Reis” (cujo link está mais adiante), a
arqueóloga Márcia Jamille diz que embora não saibamos como foram construídas,
há, por meio da arqueologia experimental e iconografia, pistas acerca da construção
das pirâmides e sabe-se acerca dos grupos e pessoas que as construíram. Márcia
Jamille explicou, em uma entrevista, uma das teorias acerca da construção das
pirâmides: “A mais aceita é que rampas de adobe (material feito de terra crua,
água e palha e outras fibras) foram construídas ao lado das pirâmides e por
elas arrastadas as pedras que compunham os edifícios[2]”.
Tendo isso em mente, que tal pesquisar e investigar mais
sobre o Egito Antigo? Abaixo estão listados alguns links para que iniciemos uma
fascinante jornada pelo mundo antigo.
Canal do Youtube “Site Arqueologia Egípcia”, apresentado
pela arqueóloga Márcia Jamille. Segue dois links de vídeos:
Site Arqueologia Egípcia, administrado por Márcia Jamille:
Livro “O Egito Antigo” do professor Arnoldo W. Doberstein:
Link da entrevista de Márcia Jamille realizada por Marco
Aurélio Vigário para o Almanaque do jornal O Popular de Goiânia:
A história
foi publicada originalmente em 1999 em dois volumes Batman: Book of the Dead Book. Of 1 of 2 e Batman: Book of the Dead Book – 2 of 2. No
Brasil saiu em 2000, pela editora Abril em dois volumes Batman: o Livro dos
Mortos Tomo 1 e Batman: o Livro dos Mortos Tomo 2.
Palavras-Chave: Batman: o livro dos mortos, Doug Moench, Egito, Nekhrun, Pirâmides, Túnel do Tempo, Etnocentrismo, Anacronismo
[1]PETIT,
Paul. História Antiga. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 7.
[2]VIGÁRIO,
Marco Aurélio. Atraídos pelo Egito. In: O
Popular e Jornal do Tocantins. Domingo, 23 de março de 2014.
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