Uma saga pós-apocalíptica: Ramthar



Ramthar foi criado em meados da década de 1980, por Deodato Borges e Mike Deodato Jr., e, em sua primeira aparição, apesar de ter aparência de arma de guerra, estrelou uma pequena história de humor. No entanto, em posteriores histórias do personagem, o leitor encontrará uma pegada bem diferente: mistura de ação com ficção científica.

Conforme escreveu Franco de Rosa, o visual de Ramthar é “[...] uma alegoria dos cangaceiros brasileiros, pois utiliza dois cinturões de balas, cruzados no peito”. No entanto, o comportamento e lado psicológico do personagem lembra bastante Max Rockatansky, o protagonista do filme Mad Max (1979), de George Miller. Assim como Max, Ramthar teve uma pessoa querida morta por um assassino do deserto que se locomovia com moto. Mesmo assim, não quero insinuar que Ramthar é uma cópia, apenas salientar semelhanças que não impedem que o personagem criado por Deodato Borges e Mike Deodato Jr., tenha seu valor. Além dessas relações, Franco de Rosa também traça paralelos da personalidade de Ramthar com elementos presentes no livro Planeta dos Macacos de Pierre Boulle, o filme Il buono, il brutto, il cativo (1966) de Sergio Leone e Den, personagem de quadrinhos de Richard Corbein[1].


Na primeira história do encadernado publicado pela Mythos Editora, Jannus dirige um tanque no deserto enquanto papeia com Yreva, até que ambos avistam um lagarto correndo no solo poeirento. A comida é escassa e perder o animal não é opção. Enquanto isso, Ramthar está num profundo sono, até que, de repente, os condutores do veículo se deparam com vários tanques de guerra comandados por outro grupo. Os estranhos começam a atacar o tanque que abriga Jannus, Yreva, Ramthar e o cão Bórus. Tal situação tira o sono de Ramtar que acorda gritando: “Merda! O que está acontecendo aqui?”. Ramthar pega uma arma e começa a explodir os inimigos. Há um festival de tiros, explosões e até um lançador de foguetes entra em ação pelas mãos de Ramthar. Ele mostra que não brinca em combate e que sua primeira opção sempre será exterminar o adversário.

Após o combate, Jannus ficou ferido e impedido de caçar o lagarto. Com isso, Yreva saiu, junto com o cão Bórus, para procurar a presa reptiliana. Conforme o tempo passava, Yreva e o cachorro não apareciam. Então, Jannus decidiu espiar o entorno com ajuda de um binóculo embutido no tanque de guerra. Eis o susto: Yreva estava sofrendo ataque de vários homens. Ramthar, de início, não liga e demonstra não se importar com a situação. Aparenta ser alguém que se importa com sua sobrevivência do que com a preservação de terceiros. Mas, após Jannus falar que são os “salteadores do deserto” que atacam sua amiga, o grandalhão musculoso não mede esforço para entrar na confusão. 

O líder dos “salteadores do deserto” é Abbar, o mesmo figurão que matou Adah, que era como uma mãe para Ramthar. O desejo de vingança pessoal falou mais alto. No confronto com Abbar, Ramthar é direto, objetivo e não é daqueles heróis que procuram dialogar com os inimigos, muito menos se propõe a encenar um ritual de “porradas fofas”. Invalida o vilão de longe, com dois tiros e depois, sem piedade, arranca a cabeça de Abbar após atropelá-lo com uma moto. Após sua vingança, deixa claro que a motivação fora apenas um acerto de contas, nada mais. A vida de uma companheira de jornada apocalíptica não importara para Ramthar.

Na segunda história, denominada “Deus de Fogo”, é revelado a direção do percurso trilhado por Ramthar e seus companheiros. Estão indo em direção ao Sul, mas nenhuma informação a mais é dada. Não sabemos qual país (se bem que já não existem mais países) é o cenário, não há pontos conhecidos, apenas trechos contínuos de terra de um planeta destruído. Há, também, menção a uma possível cidade que ainda existe, mas não há mais nenhuma informação sobre sua condição. Nessa aventura, Ramthar e Yreva, ajudarão a depor um governo de um tirano que governa uma cidade. A história tem tudo: explosão, corpo incinerado, messianismo, pessoas armando um golpe. Há, inclusive, uma bela corrida com dois carros, no estilo de Mad Max, um deles dirigido por Ramthar e o outro por Goran, o governador. Depois de todo confronto, resta apenas se lamentar com Yreva “Mortes; pequenas e grandes guerras, doenças, fome, horror... loucura... esse é o planeta que herdamos... que futuro nos espera?... ainda assim uma força nos faz continuar lutando pela sobrevivência nesse mundo estéril... mas... até quando?”.

Na terceira história, Ramthar segue errante pelo vasto deserto que toma conta da Terra: “Pela vastidão do deserto abrasador arrasta-se Ramthar, o viajante, debilitado pela fome e pela sede. E o pior: sem ter para onde ir...”. Tendo o imenso Sol por companhia, Ramthar cai em um buraco e enfrenta uma formiga gigante. Após nocautear o imenso inseto, é abordado por um senhor que o apresenta a um abrigo nuclear. Porém, é "abrigo" apenas no nome, já que no fundo serve para confinar pessoas que ficam submetidas a um tirano louco, que manipulou, em oculto, os computadores para manter todos presos lá dentro. Conforme a neta do tirano revelou para Ramthar, "Enqaunto estivermos no submundo, ele é o Deus todo-poderoso de nossa comunidade. E teme perder esta condição na superfície". Ou seja, até a esperança de conservar espécies vivas virou barganha utilizada pelo egoísmo e autoritarismo de um "defensor" da vida. Mas que vida é possível no meio?

Antes do deserto tomar conta de tudo, um grupo de pessoas temerosas por uma guerra nuclear com proporções inimagináveis, decidiu criar um abrigo e fazer igual a arca de Noé, guardar um exemplar de cada espécie. Apesar da base ter resistido bem à guerra que houve, a radiação acabou atingindo o local e, como resultado, algumas anomalias surgiram, inclusive a formiga gigante. A história, diferentemente das duas anteriores, é recheada por animais monstrificados. Mas, assim como as outras, há um líder fanático e autoritário deposto por Ramthar.

Ramthar é um homem de poucas palavras, marcado por um trauma de infância e que vive em um planeta destruído pela ganância humana. Embora ele mesmo tenha deixado claro e mais de uma vez que não tem interesse em ficar “salvando” pessoas, na terceira história ele é representado como alguém que até cogita, um dia, viver com outras pessoas e se entregar até mesmo um grande amor.

Os desenhos de Mozart Couto e Mike Deodato Jr., são bem eficazes na imersão do leitor na história. A sensação é de que só restou poeira, ruínas de cidades e o imenso Sol que a todos vigia. Há bandos salteadores no deserto; há regimes autocráticos regendo as cidades; há grupos isolados que em nome do que pensam haver “lá fora”, decidem resignar-se com uma vida isolada; há messianismo misturado com golpe para depor tiranos; há tudo o que um amante de contos e filmes pós-apocalípticos esperará encontrar em uma história. É uma leitura que vale a pena até para quem não é simpatizante ou não conhece o gênero, pois a história é bem contada e os desenhos conquistam o olhar desde a primeira página. Além disso, vale a menção de que é de autoria de brasileiros e é uma obra que não deve em nada às demais literaturas acerca do tema.

No fim, o que resta é ter esperança, e, encerro com a fala de Mara, uma mulher sonhadora que buscava liberdade. Depois de conseguir fugir do governo tirânico de seu avô e após andar por dias em um deserto, num mundo destruído, avistou uma planta e disse: “Esta plantinha nos mostra que a terra é fértil. Há um pequeno rio à frente, próximo às pedras do deserto. É aqui que reacenderemos o fogo da vida... em liberdade”. Espero que a humanidade tenha consciência no presente para que no futuro não precise repetir essa frase na vida real.







[1]Franco de Rosa, editor do encadernado da Mythos, fez essas relações, que ao me ver conferem, mas não ficou claro se ouve inspiração dos criadores nessas obras ou se há apenas coincidências.

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