“Hard Boiled – À queima-roupa” de Frank Miller e Geof Darrow


Unidade Dois. Arte de Geof Darrow.

            Como será o futuro? Qual a relação da humanidade com as diversas tecnologias produzidas? Quais os níveis e fronteiras para interação de partes artificiais no corpo humano? Esse consumo desenfreado será parado pelos recursos naturais? Qual o nível de controle que megacorporações terá? É possível sonhar com uma sociedade melhor com tantos avanços tecnológicos aliados às escolhas políticas da atualidade?

Arte de Geof Darrow.

            Frank Miller tentou refletir sobre algumas dessas questões quando publicou durante 1990-1991 “Hard Boiled”, pela Editora Dark Horse. A época da história se passa em 2029, num futuro distópico. O roteiro de Miller é preciso e fluído, combina perfeitamente com a arte de Geof Darrow, que delineou cada objeto, cada detalhe, cada informação que não aparecia no roteiro, mas que fica explicitamente mostrada pelos desenhos. De forma que faz sentido dizer, no caso dessa Graphic Novel, que para entender o mundo construído por Miller, o contexto, as diversas culturas, etc, é necessário percorrer cada pontinho, cada traçado, cada linha, cada geometria da arte de Darrow. Juntos, criaram uma boa obra de cyberpunk. De acordo com Adriana Amaral:

O cyberpunk é visto como uma visão de futuro no qual há ambiguidade intrínseca à época, sendo por vezes nostálgico, romântico e anti-tecnológico e por vezes deslumbrado com os “brinquedinhos proporcionados pela tecnologia per se[1].

Nixon sendo atropelado. Arte de Geof Darrow.

            Em 2029, com os avanços tecnológicos, com a medicina alçando voos impossíveis há anos atrás, seria possível supor que a vida estaria melhor? “Não” ou “depende” do seu conceito de “melhor”. Frank Miller nos apresenta a um futuro no qual as pesquisas e produção de robôs atingiu tamanho desenvolvimento que para eles funcionem “corretamente” é necessário implantar “memórias” nas máquinas de modo a garantir melhor funcionamento e excluir chances de “rebelião” da “criatura”.

Nixon, arte de Geof Darrow.


            Em Hard Boiled não há pessoas se rebelando (pelo menos não aparece). Os seres humanos estão ocupados demais com seus entretenimentos, com o consumo, com seus afazeres, com as diversas formas de satisfazer os sentidos. Enquanto uns consomem demais, outros estão pesquisando para que o status quo não se altere.

            A história acompanha a vida de Carl Selltz, que, a princípio, é um investigador de seguros, um homem calmo, cidadão exemplar, bom marido e o símbolo do que seria o melhor pai. Há também Nixon, que é um cobrador de impostos extremamente violento, é capaz de destruir quarteirões e deixar muitos mortos durante um turno de trabalho. E a Unidade Quatro, que é um robô, aparentemente o mais avançado em 2029. Essas três identidades coexistem numa mesma criatura. O que existe mesmo (será se existe?) é a Unidade Quatro, ele é um robô. Contudo, a corporação que o criou, implantou duas memórias distintas nele, a de Carl Seltz e a de Nixon e fez com que ele não soubesse que é um robô. Em ambas as identidades, o robô pensa ser humano. O que nos leva a refletir, ele pode ser considerado humano? Pois até depois que a Unidade Quatro percebe ser robô, ela luta contra seu “destino” ou “sua programação”. A Unidade Quatro (ou Carl Seltz ou Nixon) é uma metáfora para falar acerca dos seres humanos de sua época (2029). De acordo com Ariana Amaral, nas narrativas cyberpunk outra questão fundamental é o da “[...] identidade/existência e o fim da memória privada”[2]. A memória, em Hard Boiled pode ser manipulada, ao menos em robôs (será se haveria um projeto para estender isso aos humanos?), por uma empresa que detém direitos (ou será algo ilegal) para desenvolver esse tipo de tecnologia.

Nixon parando um carro para "verificar" a carteira do motorista. Arte de Geof Darrow.

            Há imensa diferença entre centro e periferia. Enquanto a periferia é apresentada, brevemente, como o lugar para o conforto, a família, o lar, sem sujeira ou poluição. Já o centro é o lugar dos congestionamentos, uma infinidade de veículos que, conforme expressa a arte de Geof Darrow, parece não ter fim, os lugares são lotados, muitas pessoas com diversos visuais, roupas, cortes de cabelo, etc. Os seres humanos parecem um borrão, são retratados como contexto, cuja identidade é expressa apenas no conteúdo que trazem no corpo e na pele, parece até que não possuem alma. São como programações que buscam o prazer, a satisfação do desejo, o consumo. Já os robôs, parecem mais conscientes e reflexivos do que a maior parte da humanidade.

Mercado sendo destruído durante uma perseguição de Nixon. Arte de Geof Darrow.

Local de entretenimento. Observe a arena central. Arte de Geof Darrow.

A aparente exceção se dá com relação àqueles que “controlam” e “produzem” entretenimento, os bens de consumo, as tecnologias, os robôs. Esses são representados como seres que, apesar de estarem imersos nessa sociedade do consumo, possuem alguma autonomia. Conforme ressaltou Adriana Campos, no gênero cyberpunk, os “[...] personagens, eles são, em sua maioria, meio humano, meio androides e, em geral, os cyborgues são mais humanizados que os próprios humanos”[3]. Em Hard Boiled, os robôs (a tradução para o português está como robô, mas esses personagens, assim chamados, aparentam ser androides), com partes bioorgânicas, são mais “humanizados” e dotados com certo “anseio” por viver e “desfrutar” da vida que os humanos, ou a maioria deles.
            Contudo, ainda percebemos que, apesar da situação dos cidadãos não ter sido trabalhada explicitamente no roteiro, é possível observar que os clãs, os nichos, os grupos, as tribos, não deixaram de existir. Há punks, comunistas, sadomasoquistas, entre outros, circulando pelas ruas e mercados de forma “livre” e com seus símbolos sendo expostos, aparentemente sem nenhuma censura. Porém, essa lacuna deixa espaço para algumas questões, por exemplo, onde fica a individualização das pessoas? E as resistências? Ou será se a resistência de alguns robôs seria a metáfora para a resistência de outras culturas e grupos?

Nixon num dia normal de trabalho. Arte de Geof Darrow.

            A cidade está completamente entupida, tudo é muito, inclusive as mercadorias. O tempo todos tem gente comendo algo; dentro do carro de Carl Seltz vemos muito lixo, há latas velhas, quando ele abre a porta, as coisas começam a cair; há muito alimento de fast-food; existe até mesmo máquina de venda automática de armas, granadas, etc. Parece que o prazer anestesiante tomou conta total, seja pelo alimento ou pelo sexo. O sexo está completamente banalizado, com pessoas transando em ruas movimentadas, com corpos sendo vendidos e grande propagando sobre o tema. No começo, quando Carl Seltz começa a ter sua identidade de “pai de família” ameaçada pelas lembranças de Nixon, o cobrador de impostos homicida, a forma como a esposa de Carl Seltz tem para dominá-lo, a fim de que seus filhos injetem uma substância que irá fazê-lo dormir e voltar ao normal, é pelo sexo. Lembrando que Carl Seltz e Nixon são consciências diferentes da Unidade Quatro, que é um robô.

Até que ponto as lembranças e gostos são reais ou artificiais? Arte de Geof Darrow.

            Por que precisaram colocar lembranças para que o robô não “lembrasse” que é uma máquina, mas sim um “cidadão comum” e na hora do “trabalho” pudesse “matar adoidado” e depois “voltar para seu papel de chefe-de-família”? Para que o robô fosse melhor dominado. A Unidade Quatro (Carl Seltz) acabou entrando em conflito com a Unidade Dois. Esta última foi um robô antigo que acabou de “rebelando” contra as programações recebidas. Abaixo segue um trecho do diálogo dos dois:

Unidade Dois diz: Você é a Unidade Quatro. E eu sou apenas o modelo do ano passado. Eles nos fazem pensar que somos humanos porque é a única maneira que eles têm para nos controlar.
[...]
Unidade Quatro diz: É, mas eu sou humano, tá? Sou um cara normal. Claro que levei uns tiros na Amazônia, anos atrás, e tiveram que me remendar, mas, fora isso, sou um cara normal.

Unidade Dois diz: Não há um grama sequer de carne em você. Nem um pedaço de massa cerebral. Instalaram memórias de homens mortos em você.

Sr. Willeford. Arte de Geof Darrow.

            O grande chefão ou o cara mais poderoso que aparece na história, é o Sr. Willeford, dono da empresa “Willeford Home Apliances”. Ele é um sujeito que apesar de ser diferente dos outros, parece ter as mesmas vontades e os mesmo gostos que os outros cidadãos que aparecem na história. É quem parece administrar tudo, como se o resto das coisas que existem fossem apenas marionetes. Ele não diz uma palavra, não dá nenhuma ordem. Seus funcionários sabem para o que são pagos e o que o patrão deseja. Ele fica o tempo todo dentro de uma banheira, com mini-gnoides nuas o massageando ou fazendo sexo com partes do corpo dele. Máquinas injetam no Sr. Willeford alimentos, refrigerantes e tudo que ele precisa. Ele não precisa fazer nada, apenas se anestesiar e se saciar.

            Hard Boiled é uma boa Graphic Novel, com roteiros de Frank Miller ainda igual no auge de sua carreira. A trama tem algumas concepções que se pode perceber no filme Blade Runner (1982), com androides com lembranças e recordações tomando consciência e se confundindo com seres humanos, e Robocop 1, 2 e 3 (1987, 1990, 1993), com megacorporações envolvidas com a segurança pública e desenvolvendo armas tanto para guerra quanto para fazer seu serviço sujo (inclusive, Frank Miller foi o roteirista de Robocop 2 e 3). O início lembra um pouco o começo do filme Matrix, lançado nove anos após essa Graphic Novel, com sobreposição de “sonhos”, “lembranças”, “realidades”, deixando o leitor incapaz de apontar o que é o que ou se tudo é realidade. Pincela acerca da questão da “memória” e de sua importância para a constituição dos indivíduos e grupos na sociedade. Traça críticas para o consumo desenfreado e o lixo que a sociedade produz cada vez mais, sendo que nem sempre há a necessidade, já que se alimenta bem mais do que é necessário. Também “denuncia” certas escolhas de “desenvolvimento” sem que haja reflexão e conscientização de todos acerca dos rumos a ser tomados.

Capa da Revista. Arte de Geof Darrow.
Em 1991, essa Graphic Novel rendeu o Prêmio Eisner de Melhor Escritor e Desenhista para Frank Millher e Geof Darrow, respectivamente. Quem gosta de muita destruição, de obras cyberpunk, de ficção científica de futuro distópico, certamente adorará a leitura. No Brasil essa história foi publicada três vezes por editoras distintas. A primeira foi a Editora Atitude, em 1999, compilando a HQ em duas edições. Em 2002, foi a vez da Pandora Books, que reuniu tudo em uma edição. A mais recente, a versão que li e que recomendo, foi editada pela Devir, em 2008. Ao todo são cerca de 128 páginas de muita pancadaria, violência e reflexão.







[1]AMARAL, Adriana. Cyberpunk e pós-modernismo. S/D, p. 3
[2]AMARAL, Adriana. Cyberpunk e pós-modernismo. S/D, p. 4.
[3]AMARAL, Adriana. Cyberpunk e pós-modernismo. S/D, p. 4.

Comentários

  1. Meu amigo, que texto excitante! Me veio à memória um filme chamado (aqui no país) No mundo de 2020 (do ano de 1973), que inclusive, acredito ter visto. Adorei sua narrativa, apaixonada sem abrir mão de uma criticidade que muito me apraz. Obrigado por compartilhar isso.

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    1. Obrigado, meu amigo. Infelizmente não conheço esse filme, mas fiz uma pesquisa rápida e me interessei. Vou procurar esse filme para podermos conversar mais sobre ele. Eu que agradeço sua contribuição.

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  2. P.S. Gostaria de poder aprender mais sobre Cyberpunk e narrativas distópicas com você.

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    1. Que isso... vamos aprender juntos. Sei que você poderia contribuir legal com isso. Haverá mais...

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