O Extermínio das Lendas na Era Reagan: o grande plano de Darkseid

Billy Batson, por John Byrne


De repente, milhares de pessoas correm e os gritos formam um imenso coral de horror; vários estrondos anunciam o que se poderia denominar de “o fim do mundo”; carros são lançados ao ar da mesma forma que uma criança faz com brinquedos. Concomitantemente ao caos, ouve-se uma voz “SHAZAM!” e um raio cai na terra causando grande explosão. Eis que um gigantesco corpo incendiado cai do prédio e o menino Billy Batson assiste com olhos aterrorizados “Meu Deus... o que eu fiz? Meu poder assassinou aquele homem!”.

Em Gotham City, Batman e Robin enfrentam assaltantes e salvam uma senhora que implorava aos opressores: “Por favor... não me machuca! Não fizemos nada pra vocês!”. Mas assim que espantam o mal, os demais reféns se indagam acerca do perigo que a intervenção de Batman causou “Podíamos ter morrido!”. Em seguida uma multidão começa a espancar Robin e alguém lança um vidro de perfume no rosto de Batman.

Em Nova York surge um gigante de fogo que se autodenomina Enxofre, destrói tudo que vê pela frente. Então, Nuclear, o herói atômico, tenta deter o ser estranho, contudo, não obteve sucesso. Em seguida, Cósmico tenta vencer o vilão, mas também falha em sua empreitada até que a Liga da Justiça da América (composta por Vibro, Homem-Elástico, Vixen, Caçador de Marte, Cigana, Gládio e Nuclear), aparece, mas nem o poderoso time de super-heróis da DC Comics é capaz de deter o figurão que aterroriza as ruas.

Você deve estar se perguntando a essa altura: “O que está acontecendo?” “Qual a causa de tanto caos?”

Darkseid, um dos seres mais perigosos e malignos do universo, e governante do planeta Apokolips, criou um plano para exterminar todos os heróis da Terra. Os super-heróis da DC Comics são seres quase que divinos, muitos beiram a perfeição. Mas não é só isso, eles são tidos assim devido a competência que possuem quando estão com a tarefa de proteger a Terra das ameaças. São verdadeiras lendas vivas. Darkseid encontrou a maneira perfeita de exterminar as “lendas” e, por consequência, se tornar a única lenda conhecida pela Terra.

Darkseid. Desenhado por John Byrne

O temível vilão jogou a tecno-semente em um gerador nuclear em Nova York, e dessa “plantação” surgiu um ser chamado Enxofre. Mas essa não foi a única frente de ataque de Darkseid, que enviou G. Gordon Godfrey à Terra. A partir de programas de televisão, Gordon Godfrey participou de debates e realizou discursos de ódio e violência incitando os cidadãos a se voltar contra os super-heróis: “Esses homens e mulheres misteriosos são péssimos exemplos para nossas crianças, eles enfatizam a violência como solução para os problemas do mundo. Eles são figuras solitárias, desajustadas, fora da lei, desrespeitam a constituição”. Godfrey possui poder psíquico de levar os sujeitos a pensar de acordo com o que ele sugestiona. A partir de então, iniciou a marcha comandada por Godfrey contra as maiores Lendas do Universo DC. Foi por isso que Robin foi brutalmente atacado por pessoas movidas por ódio e revolta.

Nesse ponto, essa história em quadrinho é um grande passeio pela década de 1980 nos Estados Unidos, já que no fim do século XX, a mídia (imprensa, rádio, televisão) foi importante veículo de apresentação da diversidade da sociedade estadunidense e também dos valores políticos hegemônicos da direita conservadora, deixando de veicular o que não lhe agradava: a falta de visibilidade dos problemas dos trabalhadores na televisão[1].

Godfrey acabou influenciando até mesmo o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan. Este, por sua vez, ao perceber a grande crise que se alastrava pelo país e era “provocada”, ao seu ver, pelo protesto da população (manifestações, incêndios, tumultos, ataques a super-heróis) e ser manipulado por Gordon Godfrey, expediu um Ato Institucional que obrigava os super-heróis a cessar as atividades. Superman, ficou do lado do presidente: apenas a força policial poderia agir contra delitos e ações praticadas por pessoas que infligissem a lei.

No arco de histórias que compõe Legends, o presidente Ronald Reagan é representado como um sujeito "quase" em cima do muro. Embora tenha expedido o Ato que proibia os super-heróis de agir (conservadorismo?), o fez com base em dúvidas. Ao ser alertado por Superman, aceitou que a situação poderia ser tudo fruto de uma fraude organizada por Godfrey, mas mesmo assim, precisava tomar uma decisão e utilizou o seguinte argumento "Fui eleito pelo povo pra servir o povo".

O roteiro dessa história foi planejado no ano de 1985 e publicado no fim de 1986. Desde 1980 que os Estados Unidos eram governados por Ronald Reagan, cuja ascensão à presidência significou o corte de uma série de programas sociais e econômicos destinados a trabalhadores, com isso “Cortes sucessivos nos programas sociais voltados para a população carente caminharam ao lado de acordos de livre comércio negociados em nível internacional para abolir restrições à expansão de mercados internacionais”[2]. Com isso, as corporações se beneficiaram com as políticas conservadoras, atacando os direitos trabalhistas e sindicatos[3].

Nesse mesmo período, os EUA presenciaram a chamada “doutrina reagan” (política de ajuda a movimentos anticomunistas no terceiro mundo[4]). Desse modo, pode-se entender que “[...] a vitória de Reagan concretiza a hegemonia conservadora e o retorno ao poder de setores de direita nos EUA, que buscavam retomar, às vezes de forma intransigente, seus ideais militaristas[5]”.

No roteiro de Legends, governo dos Estados Unidos é representado como algo bem complexo. Enquanto Reagan decreta um Ato, Amanda Waller, chefe da Força Tarefa X, convoca o Coronel Rick Flag para comandar o Esquadrão Suicida[6]. Essa atividade é realizada em total sigilo, nem mesmo o presidente sabe. A Força Tarefa X simboliza a força belicosa dos EUA cujo compromisso, custe o que custar, é defender a soberania nacional, conforme a narração enfatiza enquanto o Coronel se dirigia para encontrar Amanda Waller “Pentágono, Washington, capital. Nesses corredores, caminharam aqueles que devotaram suas vidas a serviço do país...”.

O cenário estava armado. Darkseid desestabilizou os EUA a fim de invadir o planeta Terra (dá para questionar a forma como os EUA são representados como imprescindíveis para o planeta, sendo que a salvação da Terra depende do desempenho desse país e da ação dos super-heróis que lá habitam – inclusive, é claro, aqueles cujo uniforme é a bandeira do país) com seus homens Darkseid (Gordon Godfrey, Enxofre, Macro-Man, Cães de Guerra e Parademônios). O abominável e temido vilão estava quase atingindo o triunfo. Darkseid acertou o calcanhar de Aquiles dos super-heróis. O que o impedia de conquistar a Terra é que havia seres poderosos que o impedia. Com isso em mente, qual a melhor maneira alcançar o objetivo? A resposta é: desestabilizar a crença e fé que a população deposita nos super-heróis. Destruir o status de Lenda que os heróis possuíam e colocar o motivo da existência dos super-heróis (a vida dos seres humanos) voltados contra os próprios benfeitores. Em vários momentos os heróis foram cercados por manifestações e nem tinham como reagir a não ser fugir: eles não podiam matar seus protegidos.

Após se lamentar por achar que teria matado Macro-Man, Billy Batson percebeu que foi enganado e que a morte do vilão não ocorrera por sua culpa. Logo após, Lisa, uma criança, correu de encontro a manifestação que se voltava contra os super-heróis a fim de impedir que a injustiça continuasse a ser pratica. Mas, no caminho, Lisa foi atingida por objetos jogados pela população. Quando a criança desmaiou, Billy refletiu “Quem sabe o mundo precise mesmo de heróis... Nem que seja pra ser salvo dessa loucura? Não posso continuar fugindo e me escondendo pro resto da vida! Aquele velho mago confiou em mim quando me deu este poder e tenho que fazer jus a essa confiança aconteça o que acontecer!” então, eis que gritou “SHAZAM!” e o super-herói, com sabedoria de Salomão, força de Hércules, coragem de Aquiles e velocidade de Mercúrio surgiu e junto com ele a esperança.

Kent Nelson, ao tomar conhecimento do caos, percebeu que não poderia negligenciar o perigo que a Terra sofria. Sendo assim, Nelson se despediu de Inza, sua esposa, e colocou o elmo que faz o Senhor Destino se apossar de seu corpo. Senhor Destino convocou os principais heróis para lutar em conjunto: Capitão Marvel (Billy Batson), Flash (Wallace West), Canário Negro (Dina Lance), Lanterna Verde (Guy Gardner), Besouro Azul (Ted Kord), Batman (Bruce Wayne), Mutano (Garfield Logan) e Superman (Clark Kent).

Senhor Destino. Desenhado por John Byrne

Os super-heróis, então reunidos por Senhor Destino, conseguiram vencer grande parte dos soldados de Darkseid. Mas, no fim, as crianças tiveram papel fundamental. Elas se voltaram contra a massa manipulada e defenderam os super-heróis “A gente acredita nesses heróis e no que eles representam. Um dia, você falou que todo mundo pode ser herói, pai... é só querer! Por favor... seja meu herói agora!”. Tal atitude pura e sincera desencadeou ira em Godfrey, que agrediu Lisa e, com isso, a multidão se voltou contra o vilão que há pouco manipulava seus pensamentos.

No fim, a Terra (ou seria melhor dizer Os Estados Unidos?) mais uma vez ficou salva tanto de um inimigo externo quanto de si mesma. Uma nova Liga da Justiça se formou com Senhor Destino, Batman, Caçador de Marte, Canário Negro, Capitão Marvel e Besouro Azul. Ronald Reagan compreendeu que estava errado, e, de presidente que endossou a onda de repressão aos heróis passou a tolerante. Deste modo, convocou a imprensa para revogar o Ato Institucional e declarou acerca de tal atitude: “Pode acreditar que será minha decisão mais inteligente dos últimos dias”.

Em cima, da esquerda  para a direita: Lanterna Verde, Capitão Marvel, Canário Negro, Senhor Destino, Flash, Superman, Caçador de Marte e Batman. Desenhados por John Byrne.

Essa história foi publicada em 31 edições de revistas várias revistas da DC Comics, sendo que o principal dela saiu em seis números de Legends 1-6. Na edição da Panini de Lendas do Universo DC: Darkseid conta, além desses números citados, com a edição de Superman 3. Foi o primeiro crossover envolvendo vários personagens do Universo DC e diversos títulos de revistas da editora após Crise das Infinitas Terras. Embora não seja tão espetacular como esta última, Legends é uma história que faz o leitor entender qual o sentido dos super-heróis. Trabalha a questão da fé, da esperança e desilusão. Faz o leitor ter contato com uma saga escrita num momento em que as histórias de super-heróis estavam ficando mais sérias, com conteúdo mais realista, mas sem criar profundo corte com a inocência. Legends foi planejada, principalmente, pelo Editor Mike Gold. O roteiro ficou sob encargo de John Ostrander e Len Wein, dois excelentes escritores; os desenhos ficaram por conta de John Byrne, que marcou uma era por seus desenhos e roteiros em Superman, X-Man, Namor, Quarteto-Fantástico e é um dos meus desenhistas prediletos; foi arte-finalizado por Karl Kesel; e colorido por Tom Ziuko. A leitura vale muito a pena para quem quer entender a importância dos super-heróis enquanto lenda para a sociedade; é um gibi indispensável para que se conheça o espírito dos super-heróis no Universo DC; é maravilhoso contemplar os belíssimos desenhos de John Byrne; e também é um ótimo material para pesquisa acerca da situação dos Estados Unidos na década de 1980, com aparição de diversos elementos constitutivos daquele país no período em questão.

(Por bem ou por mal, estou de volta e, desta vez, pra ficar!) Capitão Marvel. Desenhado por John Byrne.

Palavras-chave: Capitão Marvel; Darkseid; DC Comics; John Byrne; John Ostrander; Legends; Len Wein; Lendas; Quadrinhos, Reagan; Senhor Destino; Shazam; Super-herói; Superman.



[1]KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. Editora Contexto: 2007. p. 209. s/p.
[2]KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. Editora Contexto: 2007. p. 209. s/p.
[3]KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. Editora Contexto: 2007. p. 209. s/p..
[4]KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. Editora Contexto: 2007. p. 209. s/p.
[5]SILVA, Rodrigo Candido da. Era Reagan: política externa, militarização e conservadorismo estadunidense na “Nova Guerra Fria”. In: VI Congresso Internacional de História. Setembro de 2013. s/p.
[6]Em Legends, o Esquadrão Suicidada é formado por: Ricky Flag, Capitão, Bumerangue, Magia, Arrasa-Quarteirão, Tigre de Bronze e Pistoleiro.

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