Após perseguir duas crianças, certa
mulher que se declarou pertencente aos “purificadores”, justificou a morte dos
pequeninos e de seus pais com o discurso de que é: “porque vocês não têm
direito de viver”. A essa altura me questionei: “Mas quem tem legitimidade de
sentenciar a vida ou a morte a outro ser?”; “O que é purificação?”; “Purificação
em relação ao que?”.
Mais tarde,
em Nova York, o General Stryker, líder da Missão Internacional Cruzada Stryker
lê seu livro religioso a partir de sua chave interpretativa “Quando, no meio de
ti, em alguma das tuas portas que te dá o Senhor teu Deus, se achar algum homem
ou mulher que fizer mal aos olhos do Senhor teu Deus, transgredindo a sua
aliança, que se for, e servir a outros deuses, e se encurvar a eles ou ao sol,
ou à lua, ou a todo o exército do céu, o
que eu não ordenei e te for denunciado... eis que, sendo verdade... então
tirarás o homem ou a mulher que fez este malefício, às tuas portas e
apedrejarás o tal homem ou mulher até que morra”.
“Deus ama,
o homem mata” é uma das minhas histórias prediletas dos mutantes do Universo
Marvel. É um ótimo material para reflexão acerca do perigo que a prática
fanática de qualquer credo religioso representa para a sociedade; faz pensar no
dano que a intolerância, tanto religiosa quanto cultural pode trazer para a
sociedade; conduz o leitor a considerar que mesmo que as diferentes formas de
intolerância religiosa ou de racismo não interfiram em seu “universo particular”,
não significa que não lhe diz respeito.
A história escrita
por Chis Claremont e desenhada por Brent Eric Anderson, lançada no ano de 1982,
choca pelo grau de conexão com a realidade, parecendo até mesmo uma filmagem de
um caso real. Chris Claremont demonstrou várias faces dos mutantes: não apenas
possuem poderes, como o usam, mas também sentem, amam, se indignam, ficam com
raiva e são suscetíveis a perder a paciência. Não é o gene X (metáfora para
particularidade ou expressão cultural de grupos que sofrem preconceito ou
racismo) dos mutantes (metáfora para representar grupo excluído e discriminado
da sociedade) que os torna melhores ou mais capazes de sentirem que sujeitos
que não portam o gene diferente. Eles sentem porque possuem coração, espírito,
cresceram em determinada cultura que os faz ter específicas reações a
diferentes acontecimentos sociais. Em suma, são capazes de tudo que qualquer homo sapiens pode e é capaz de fazer
(com exceção dos superpoderes). Claremont não apresenta os mutantes como sendo o
caminho no qual a humanidade deve ser a ponto de anular as particularidades,
mas sim enquanto mais um grupo de sujeitos com peculiaridades que vivem mundo:
igual os roqueiros, as populações negras, os migrantes de diferentes origens étnica-raciais,
etc.
A entrevista
a Chris Claremont utilizada como introdução ao gibi enriquece ainda mais a
experiência com a obra. De acordo com o roteirista, na época em que escreveu a
história, no início da década de 1980:
Ronald Reagan era o presidente dos EUA e uma onda de
conservadorismo varria a nação; uma reação da parte mais tradicional da América
contra as atitudes hedonistas e não patrióticas dos anos 1960 e 1970[1].
Após a
Segunda Guerra Mundial, casos de linchamento, violência policial e
discriminação em diversas esferas da vida civil era constante na vivência dos
negros residentes nos Estados Unidos[2].
Surgiu, daí o movimento pelos direitos civis dos negros no Estado Unidos no
qual homens e mulheres usavam várias estratégias e lutavam em prol de seus
direitos “[...] econômicos, políticos e pela dignidade social”[3]. É
nesse cenário que surgiu Martin Luther King e outros líderes.
Também se
formaram, na década de 1960, uma série de movimentos sociais que reivindicavam
valorização da juventude, atenção à miséria e eram contrários a ideias
elitistas[4].
Além, de lógico, a Guerra do Vietnã, o contexto geral da Guerra Fria, as
diversas ações que a direita e setores conservadores tomaram contra os
movimentos sociais e as transformações que ocorreram com relação aos direitos
das mulheres quanto a sexualidade, família e trabalho. Esse cenário ganhava mais corpo com certa
situação:
Liderando ao taque – e por extensão, a avalanche de
críticas ao estilo de vida “esquerdista” reinante em Nova York e Los Angeles –
estava um bando de televangelistas, propagando em todas as frequências sua
renovada visão fundamentalista sobre a bíblia[5].
A sociedade
estadunidense passou por esse período, com grandes discussões e disputas, e
setores conservadores procuraram meios para difundir suas ideias e ataques.
Nesse ponto, situa-se William Stryker, o vilão da história. Stryker é
persuasivo, participa de debates e apresenta fontes científicas e morais para
defender suas posições. Ele defende que os mutantes são ameaças em potencial ao
“povo” (então os mutantes não são povo?) e à ordem (que ordem? Ordem para quem?)
sociopolítica do mundo (em um contexto marcado por guerras, discriminações,
desigualdade social e econômica no mundo).
William
Stryker, supostamente bem-intencionado, em nome de um bem maior, acaba se
perdendo em suas convicções fanáticas e memórias de um passado doloroso. Sua
leitura unilateral de textos religiosos e sua incapacidade de compreender a
beleza existente na diversidade dos seres e das culturas dos próximos, formam
uma bola de neve que culmina em ações que chocaram até mesmo quem não ainda não
havia escolhido em qual lugar da discussão se posicionar.
O momento
que mais me chocou foi quando William Stryker apontou para um mutante e questionou
retoricamente “Você chama aquela coisa de humana?!?”. Por que fazer esse tipo
de separação? O que me dá o direito de apontar, escolher e decidir quem deve
ser exterminado? Não se trata de objetos, não se está optando por excluir todas
as colheres do mundo, mas sim seres que pensam, sentem, sonham.
Muitos não
gostam de discutir (não me refiro a brigar, mas sim em conversar) sobre
religião. Mas entendo que é necessário que o tema apareça em debates, seja
colocado em pauta para que tanto religiosos quanto não religiosos encontrem
oportunidade de colocarem a si mesmos em perspectiva. Chris Claremont fez isso
magistralmente e me levou a refletir acerca do tempo em que vivo. Entendo que a
aversão de alguns no que se refere aos debates acerca da religião ou da
introdução da religião em história de quadrinhos deve-se ao fato do desconhecimento
do significado do fenômeno da religião.
Há vários
conceitos sobre religião. Em especial, adoto a definição do antropólogo
Clifford Geertz, para quem religião é um sistema de símbolos criados e que
estabelecem motivações nos homens a partir de compreensões referentes a fatos e
acontecimentos gerais[6].
São conhecimentos da realidade que utiliza noções do sobrenatural, divindades
ou forças espirituais a fim de se entender fatos, situações, fenômenos,
origens, etc. Nesse sentido, a religião é uma excelente porta de entrada para
entender a forma como determinados sujeitos interpretam o mundo e suas
justificativas para certas atitudes.
Seguindo
nessa linha de raciocínio, religião se relaciona com conhecimento sobre algo.
Logo, é uma ótima forma de se entender aspectos da existência que nossas
limitações (sendo adeptos da religião X, Y ou até mesmo ateu), devido a
escolhas doutrinárias ou ideológicas, não nos permite alcançar.
Em “Deus
ama, o homem mata”, Chris Claremont não atacou a todas as religiões cristãs.
Apenas elegeu expressões fundamentalistas e fanáticas do cristianismo, cujo
ataque aos “diferentes” estava inserido no seu escopo doutrinário e os elegeu
enquanto metáfora a não apenas as religiões, mas também a qualquer princípio de
crença e pensamento que englobe exclusão e aniquilação de vidas.
Essa Graphic Novel é um material para ser utilizado
tanto para deleite ou diversão, quanto para reflexão acerca do contexto atual
pelo qual o Brasil passa. Além de um excelente documento referente a um período
histórico dos Estados Unidos e crítica do roteirista a determinado caminho que
percebeu que sua sociedade trilhava, é um choque que atinge o leitor a partir
das imagens do confronto entre mutantes-heróis, mutantes-anti-heróis, vilões-homo sapiens malvados e homo sapiens-massa. Como o próprio Chris
Clarimont declarou, os X-Men eram utilizados no Universo Marvel para
representar os excluídos, os discriminados e nesse gibi não foi exceção quanto
a isso.
No
encadernado da Panini Books, há alguns desenhos de Neal Adams, do qual sou fã, que
a princípio seria o desenhista do gibi. Mas Brent Eric Anderson acabou
desenhando e achei muito interessante tanto os desenhos quanto as cores. Transmite
sensação de que as cenas realmente aconteceram no “mundo real”, conferindo
gravidade ao roteiro de Chris Claremont. Embora alguns não gostem, há uma
combinação singular entre roteiro e arte em “Deus ama, o homem mata” que
contribui para a história ser marcante para o leitor.
Encerro com
a última fala de Scott Summers: “Precisar e ajudar. Ter atenção um pelo outro.
E dessa atenção vem o amor que faz o mundo existir. Pena que não exista só o
amor...”.
Publicação original: X-Men: God loves, man kills (1982).
Palavras-chave: X-Men: Deus ama, o homem mata; Religião; Super-heróis; Graphic Novel; Mutantes; Preconceito; Chris Claremont
[1]CLAREMONT,
Christopher. Introdução. In: __________; ANDERSON, Brent Eric. X-Men: Deus ama, o homem mata. Panini
Books, 2014. s/p.
[2]KARNAL,
Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. Editora
Contexto: 2007. p. 204. s/p.
[3]KARNAL,
Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. Editora
Contexto: 2007. p. 205. s/p.
[4]KARNAL,
Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. Editora
Contexto: 2007. p. 209. s/p.
[5]CLAREMONT,
Christopher. Introdução. In: __________; ANDERSON, Brent Eric. X-Men: Deus ama, o homem mata. Panini
Books, 2014. s/p.
[6]GEERTZ,
Clifford. Interpretação das culturas. Rio
de Janeiro: LTC, 2008.
Belo texto.
ResponderExcluirObrigado, Rayane =)
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