O nascimento de um super-herói: Batman, ano um de Frank Miller


         “Ele irá se tornar o maior combatente do crime de todos os tempos. Isso não será fácil”. A história já inicia com o que todo mundo espera: é a história do primeiro ano de atividade do maior (quem não for fã, pode ler “um dos maiores”) e mais icônico personagem dos quadrinhos. Contudo, o caminho para chegar a tal status não será simples.

            O tenente James Gordon ainda não é o famoso Comissário de polícia que todos acostumaram a ver. Ele está chegando agora na cidade, é bem consciente do que o espera:“Gotham City. Talvez seja isso que eu mereça... passar um tempo no inferno”. Gotham é o inferno, lugar que Gordon vai contra a própria vontade. Mas mesmo assim, o pensamento paradoxal do personagem revela que ele acredita que  talvez mereça (que não é o mesmo de querer) ir para lá. O que será que Gordon carrega? Quem é Gordon? Por que essa autocondenação?


            Será se James Gordon terá a mesma recepção que Dante Alighieri recebeu:“Pape Satan, pape Satan, aleppe: Pluto com rouca voz, ao vernos brada[1]? Nem chefe do submundo, muito menos demônios. Detetive Flass recebe Gordon e, com o típico ar frio de um habitante de uma gigantesca cidade, expulsa um senhor que está dando livro em troca de doação. Há o sintoma de uma cidade tão grande que a variedade de rostos dos transeuntes são camuflados pela homogeneidade que a massa forma. São corpos no espaço-tempo, nada mais.

            Ao mesmo tempo que o James Gordon chega em Gotham, Bruce Wayne retorna, mas de avião. Numa cidade moderna com diversos serviços e meios de transporte, cada um escolhe conforme interesse e conforto que o dinheiro possa pagar. Diferentemente do nosso amigo policial, Bruce não está pisando pela primeira vez nessa cidade, mas sim retornando após um longo período de ausência. “Daqui de cima, tudo que se vê são torres de concreto e telhados cobertos de neve. O trabalho de homens que morreram há gerações”. Gotham City, para Bruce Wayne, foi construída no decorrer de anos, tanto por pessoas que ele nunca ouviu falar quanto por sua família, em específico seus pais assassinados no próprio lugar que ajudaram a desenvolver.

O caráter frio da neve que encobre concretos, que por sua natureza não possuem vida, acentua o tom inanimado que a cidade tem a partir da perspectiva de Bruce. No entanto, ele tem consciência de que a vida flui no dia-a-dia por meio dos sujeitos que transitam pelas ruas, habitam e trabalham nos enormes edifícios, na alegria e no amor que brota dos corações que vivem no lugar. Bruce Wayne é consciente que as belezas criadas pelo calor humano são manchadas pela ação de seres que prejudicam a existência de Gotham “Deveria ter pegado o trem. Eu precisava estar mais perto. Precisava ver o inimigo”. Ele não retornou apenas para passear, muito menos visando aproveitar despreocupadamente sua imensa fortuna.

Batman, ano um foi publicado nas edições de Batman 404-407. A história, junto com as capas, possui menos de 100 páginas. São quatro números publicados no ano de 1987, após a Crise nas Infinitas Terras (série cujo objetivo era reiniciar todas as histórias do Universo DC nos quadrinhos). Após anos de publicação de histórias com criação de várias linhas temporais (Terra 1, Terra 2, etc..), Marv Wolfman teve a ideia de criar um roteiro para começar de novo o Universo e organizá-lo. Após a série, personagens como Batman, Mulher-Maravilha e Superman tiveram suas origens recontadas por determinados roteiristas e desenhistas[2].

O Morcegão, no caso, ficou sob responsabilidade de Frank Miller, no auge  de sua  carreira, e de David Mazzucchelli, que deu um show nos desenhos. Na história, Frank Miller apresentou elementos fundamentais para personalidade de Bruce Wayne e James Gordon. Em poucas páginas, os desenhos, que trazem um clima noir, e o texto fluído contribuíram para a história oferecer aos leitores os elementos necessários para compreensão do Batman.

A história apresenta a trajetória de amadurecimento de James Gordon: sua desilusão quanto ao sistema policial e compreensão de que até ele, um homem que se considera “justo” e que desaprova “corrupção”, pode fazer coisas que magoam até mesmo a pessoa que mais ama, pela qual fez o sacrifício de trabalhar em Gotham City. A princípio, tenta seguir na dele, sem se corromper, mas também sem provocar muito transtorno na corporação policial (apesar de suas ações começarem a incomodar). Contudo, Frank Miller apresentou um contexto no qual atitude neutra ou leve inclino contrário à “sujeira”, é sinônimo de inimigo por parte daqueles que administram a máquina pública. Detetive Flass tratou de deixar o “parceiro” bem "informado": “Não vai durar muito neste trabalho se não aprender a relaxar, Jimmy. Quer dizer... a gente tem o nosso próprio jeito de fazer as coisas aqui em Gotham”.

Já Bruce Wayne ainda é inexperiente, tenta conhecer direito o “inimigo” que cogitava enfrentar em breve. Frank Miller e David Mazzucchelli apresentam os primeiros passos do jovem candidato a herói e suas primeiras “derrotas”. O leitor é vê a história de um rapaz que ainda é atormentado por fatos do passado e é neles que, no decorrer do enredo, encontrará força para não desistir de seu plano de livrar a cidade do “mal”. Um ser que apesar da inexperiência, sabe que necessita aprender, é criativo ao criar símbolos e álibis, possui imenso potencial para ser bem mais do que um riquinho que se aventura pelas ruas durante a madrugada.

O Batman do “ano um” não é aquele morcegão que sabe de tudo, a mitologia do Cavaleiro das Trevas é criada aos poucos. Ele treina muito antes de sair. A primeira ronda de Bruce Wayne na periferia de Gotham, o apresentou a tudo que aquele lugar tem para ser considerado “inferno”: prostituição, menores sendo exploradas por cafetões, sujeitos armados prontos para atacar, policiais corruptos. As ruas são repletas de lixo e de moradores de rua. As placas luminosas de lojas e propagandas que apresentavam belas mercadorias e serviços não fazem jus a tudo que é encoberto pelas sombras da desigualdade social. Conforme Valeria Yida:

“Frank Miller alude em Ano Um à Nova Iorque dos anos 80, pois Gotham tem os problemas de toda grande metrópole moderna: a violência e o crime organizado, gangues de rua, trânsito, mendigos e prostituição, prédios abandonados e áreas decadentes[3].

            “Realidade” e “ficção” dialogam a fim de criar a situação ideal para formação de um super-herói. É do emaranhado de circunstâncias que começaram com uma promessa de vingança que formou o entusiasmo em um ser que se predispôs a fazer algo para mudar a cidade, com seu repentino “insucesso” aliado a compreensão de que as dificuldades que imaginava encontrar eram, na realidade, muito maiores, junto com forte desejo de morrer e, enfim, ter todos os problemas e tristezas exterminados, que a epifania surgiu e fez o garoto-rapaz compreender que dinheiro, vontade e técnica precisam ser conciliadas com um símbolo. Algo que faça os bandidos sentirem o mesmo terror que causam nos cidadãos. Nada melhor que o morcego, animal que aterrorizou Bruce Wayne no passado. Eis que da sombra, com a pálida iluminação da Lua, surge ele, o morcego, imitando o poema O Corvo de Edgar Allan Poe, entra pela janela quebrando tudo o que há entre Bruce Wayne e seu destino.


A partir de então, o desejo de viver toma conta de Bruce, fazendo-o entender que sua vida pode significar a morte de um “mal”. Surge um mito que virou ícone:

Faz sentido falar das propriedades essenciais de Batman, pois ele se transformou em um ícone. [...]. Como o Super-Homem e muitos outros heróis de ficção dentro e fora do mundo dos quadrinhos, o conceito de Batman cresceu e amadureceu, tornando-se algo diferente e maior. Esses conceitos novos, maduros, de tais personagens foram transformados em ícones como parte de nossa mitologia moderna. [...]. Há um poder psicológico nesse personagem – ou que apela à nossa consciência literária como um arquétipo – e é por isso que ele existe há tanto tempo e continua a inspirar fãs[4].

            De acordo com Ryan Indy Rhodes e David Kyle Johnson, Batman passou por alterações desde sua criação em 1939[5], mas, com o tempo, as reformulações que sofreu e os elementos que se solidificaram (o traje, os métodos, a moral) constituíram o que se tornou um ícone e ao longo dos anos impressionou fãs. O projeto de Bruce Wayne criar uma forma de combater o crime não interferiu apenas na vida de bandidos e políticos corruptos dos quadrinhos, acabou saltando para a “realidade”.


            Em uma reunião de políticos, mafiosos e o comissário de polícia, borbulha discussões acerca do novo figurão que está prejudicando os negócios dos criminosos e alardeando toda população. Eles estão diante de um farto banquete que simboliza o desvio de dinheiro e o império que fora construído com verba ilícita. Então, eis que Batman, utilizando técnicas de medo e as sombras, aparece aterrorizando a todos“Senhoras e senhores, vocês comeram bem. Comeram a riqueza de Gotham... seu espírito. O banquete acabou. De hoje em diante nenhum de vocês estará a salvo”.

            No desenrolar da história, surge o que seria uma sugestão de Triunvirato de Gotham City, no qual Batman, James Gordon e Harvey Dent trabalham em conjunto na medida em que desempenham suas funções com a finalidade de acabar com a criminalidade doentia da cidade. No fim, um gigantesco esquema de corrupção é desmontado. No entanto, a real parece cair. A luta contra o crime não estava nem perto de chegar ao fim e James Gordon reflete“[...] corre um boato de que o comissário está acertando com o prefeito os termos da sua demissão. Já estão cogitando o nome de Grogan pra assumir o cargo. Um sujeito bem pior”. Além disso, há a presença de um sujeito estranho na cidade “O nome do louco é Coringa”. Gordon sabe que o fato do horizonte ter sido banido de Gotham City por causa dos gigantescos prédios, nas sombras é possível encontrar esperança: “Logo vai chegar um amigo que pode me ajudar. Deve estar aqui em poucos minutos...”.

            Será se Batman, Gordon e Harvey não deveriam combater as causas da desigualdade social e econômica da sociedade também? Enfim, seja como for, eles sabem que o combate ao crime da forma como fazem não fará de Gotham City mudar da água para o vinho. No entanto, também entendem que é preciso que o maior número de pessoas contribua a fim de que se possa sonhar, um dia, em um lugar mais justo para se viver.


            "Batman, ano um" é um clássico das histórias do Batman e até hoje é referencial para o cânone do personagem. A importância desse gibi não fica restrito a fãs do Batman. É uma das histórias que, juntamente com The Dark Knight Returns (1986), Watchmen (1986-1987), Crisis on Infinite Earths (1986), contribuiu para revitalizar o gênero de super-heróis nos quadrinhos. Para os interessados, esse roteiro foi reproduzido no filme Batman: Year One de 2011, que é uma animação fiei à história escrita por Frank Miller e desenhada por David Mazzucchelli. Além disso, há forte influência dessa história em quadrinhos em dois filmes do morcegão dirigidos por Christopher Nolan: Batman Begins de 2005 e The Dark Knight de 2008.


Palavras-chave: Ano Um, Frank Miller, Batman, DC Comics, Modernidade




[1]ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Versão para eBook, 2003. s/p.
[2]Superman foi roteirizado e desenhado pelo mestre John Byrne e Mulher-Maravilha foi desenhada por George Perez, que também escreveu os argumentos, e roteirizada por Len Wein.
[3]YIDA, Valéria. A cidade de Gotham na novela gráfica Batman: Ano Um. In: Imaginário! – 10 de Junho de 2016.
[4]RHODES, Ryan Indy; JOHNSON, David Kyle. O que Batman faria? Bruce Wayne como modelo moral. In: IRWIN, Willian. Batman e a Filosofia: O Cavaleiro das Trevas da Alma. São Paulo: Madras, 2008. p.119.
[5]A primeira aparição do Batman foi na revista Detective Comics 27, criado por Bob Kane e Bill Finger.

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