“Ele irá se tornar o maior combatente do crime de todos os
tempos. Isso não será fácil”. A história já inicia com o que todo mundo espera:
é a história do primeiro ano de atividade do maior (quem não for fã, pode ler “um dos maiores”) e mais
icônico personagem dos quadrinhos. Contudo, o caminho para chegar a tal status
não será simples.
O tenente James
Gordon ainda não é o famoso Comissário de polícia que todos acostumaram a ver.
Ele está chegando agora na cidade, é bem consciente do que o espera:“Gotham City. Talvez seja isso que eu
mereça... passar um tempo no inferno”. Gotham é o inferno, lugar que Gordon
vai contra a própria vontade. Mas mesmo assim, o pensamento paradoxal do
personagem revela que ele acredita que talvez mereça (que não é o mesmo de querer) ir para lá. O
que será que Gordon carrega? Quem é Gordon? Por que essa autocondenação?
Será se James Gordon terá a mesma recepção que Dante Alighieri recebeu:“Pape Satan, pape Satan, aleppe: Pluto com
rouca voz, ao vernos brada[1]”?
Nem chefe do submundo, muito menos demônios. Detetive Flass recebe Gordon e,
com o típico ar frio de um habitante de uma gigantesca cidade, expulsa um
senhor que está dando livro em troca de doação. Há o sintoma de uma cidade tão
grande que a variedade de rostos dos transeuntes são camuflados pela homogeneidade que a massa
forma. São corpos no espaço-tempo, nada mais.
Ao mesmo
tempo que o James Gordon chega em Gotham, Bruce Wayne retorna, mas de avião.
Numa cidade moderna com diversos serviços e meios de transporte, cada um
escolhe conforme interesse e conforto que o dinheiro possa pagar. Diferentemente
do nosso amigo policial, Bruce não está pisando pela primeira vez nessa cidade,
mas sim retornando após um longo período de ausência. “Daqui de cima, tudo que se vê são torres de concreto e telhados
cobertos de neve. O trabalho de homens que morreram há gerações”. Gotham
City, para Bruce Wayne, foi construída no decorrer de anos, tanto por pessoas
que ele nunca ouviu falar quanto por sua família, em específico seus pais
assassinados no próprio lugar que ajudaram a desenvolver.
O caráter frio da neve que
encobre concretos, que por sua natureza não possuem vida, acentua o tom
inanimado que a cidade tem a partir da perspectiva de Bruce. No entanto, ele
tem consciência de que a vida flui no dia-a-dia por meio dos sujeitos que
transitam pelas ruas, habitam e trabalham nos enormes edifícios, na alegria e no amor
que brota dos corações que vivem no lugar. Bruce Wayne é consciente que as
belezas criadas pelo calor humano são manchadas pela ação de seres que prejudicam
a existência de Gotham “Deveria ter
pegado o trem. Eu precisava estar mais perto. Precisava ver o inimigo”. Ele
não retornou apenas para passear, muito menos visando aproveitar
despreocupadamente sua imensa fortuna.
Batman, ano um foi publicado nas edições de Batman 404-407. A história, junto com as capas, possui menos de 100
páginas. São quatro números
publicados no ano de 1987, após a Crise
nas Infinitas Terras (série cujo objetivo era reiniciar todas as histórias do Universo DC nos
quadrinhos). Após anos de publicação de histórias com criação de várias linhas
temporais (Terra 1, Terra 2, etc..), Marv Wolfman teve a ideia de criar um
roteiro para começar de novo o Universo e organizá-lo. Após a série,
personagens como Batman, Mulher-Maravilha e Superman tiveram suas origens
recontadas por determinados roteiristas e desenhistas[2].
O Morcegão, no caso, ficou sob
responsabilidade de Frank Miller, no auge de sua carreira, e de David Mazzucchelli, que deu
um show nos desenhos. Na história, Frank
Miller apresentou elementos fundamentais para personalidade de Bruce Wayne e
James Gordon. Em poucas páginas, os desenhos, que trazem um clima noir, e o texto fluído contribuíram para a
história oferecer aos leitores os elementos necessários para compreensão do
Batman.
A história apresenta a trajetória
de amadurecimento de James Gordon: sua desilusão quanto ao sistema policial e
compreensão de que até ele, um homem que se considera “justo” e que desaprova “corrupção”,
pode fazer coisas que magoam até mesmo a pessoa que mais ama, pela qual fez o
sacrifício de trabalhar em Gotham City. A princípio, tenta seguir na dele, sem
se corromper, mas também sem provocar muito transtorno na corporação policial
(apesar de suas ações começarem a incomodar). Contudo, Frank Miller apresentou
um contexto no qual atitude neutra ou leve inclino contrário à “sujeira”, é sinônimo
de inimigo por parte daqueles que administram a máquina pública. Detetive Flass
tratou de deixar o “parceiro” bem "informado": “Não vai durar muito neste trabalho se não aprender a relaxar, Jimmy.
Quer dizer... a gente tem o nosso próprio jeito de fazer as coisas aqui em
Gotham”.
Já Bruce Wayne ainda é inexperiente,
tenta conhecer direito o “inimigo” que cogitava enfrentar em breve. Frank Miller
e David Mazzucchelli apresentam os primeiros passos do jovem candidato a herói
e suas primeiras “derrotas”. O leitor é vê a história de um rapaz que ainda é
atormentado por fatos do passado e é neles que, no decorrer do enredo,
encontrará força para não desistir de seu plano de livrar a cidade do “mal”. Um ser que apesar da inexperiência, sabe que necessita aprender, é criativo ao
criar símbolos e álibis, possui imenso potencial para ser bem mais do que um
riquinho que se aventura pelas ruas durante a madrugada.
O Batman do “ano um” não é aquele morcegão que sabe de tudo, a mitologia do
Cavaleiro das Trevas é criada aos poucos. Ele treina muito antes de sair. A primeira ronda de Bruce Wayne na
periferia de Gotham, o apresentou a tudo que aquele lugar tem para ser
considerado “inferno”: prostituição, menores sendo exploradas por cafetões,
sujeitos armados prontos para atacar, policiais corruptos. As ruas são repletas
de lixo e de moradores de rua. As placas luminosas de lojas e propagandas que apresentavam belas mercadorias e serviços não fazem jus a tudo que é encoberto pelas sombras
da desigualdade social. Conforme Valeria Yida:
“Frank Miller alude em Ano Um à Nova Iorque dos anos 80, pois Gotham tem os problemas de
toda grande metrópole moderna: a violência e o crime organizado, gangues de
rua, trânsito, mendigos e prostituição, prédios abandonados e áreas decadentes[3].
“Realidade”
e “ficção” dialogam a fim de criar a situação ideal para formação de um super-herói.
É do emaranhado de circunstâncias que começaram com uma promessa de vingança
que formou o entusiasmo em um ser que se predispôs a fazer algo para mudar a
cidade, com seu repentino “insucesso” aliado a compreensão de que as
dificuldades que imaginava encontrar eram, na realidade, muito maiores, junto
com forte desejo de morrer e, enfim, ter todos os problemas e tristezas exterminados, que a epifania surgiu e fez o garoto-rapaz compreender que dinheiro, vontade e
técnica precisam ser conciliadas com um símbolo. Algo que faça os bandidos
sentirem o mesmo terror que causam nos cidadãos. Nada melhor que o morcego,
animal que aterrorizou Bruce Wayne no passado. Eis que da sombra, com a pálida
iluminação da Lua, surge ele, o morcego, imitando o poema O Corvo de Edgar Allan Poe, entra pela janela quebrando tudo o que
há entre Bruce Wayne e seu destino.
A partir de então, o desejo de
viver toma conta de Bruce, fazendo-o entender que sua vida pode significar a
morte de um “mal”. Surge um mito que virou ícone:
Faz sentido falar das propriedades essenciais de Batman,
pois ele se transformou em um ícone.
[...]. Como o Super-Homem e muitos outros heróis de ficção dentro e fora do
mundo dos quadrinhos, o conceito de Batman cresceu e amadureceu, tornando-se
algo diferente e maior. Esses conceitos novos, maduros, de tais personagens
foram transformados em ícones como
parte de nossa mitologia moderna. [...]. Há um poder psicológico nesse
personagem – ou que apela à nossa consciência literária como um arquétipo – e é
por isso que ele existe há tanto tempo e continua a inspirar fãs[4].
De acordo
com Ryan Indy Rhodes e David Kyle Johnson, Batman passou por alterações desde
sua criação em 1939[5],
mas, com o tempo, as reformulações que sofreu e os elementos que se
solidificaram (o traje, os métodos, a moral) constituíram o que se tornou um ícone e ao longo dos anos impressionou
fãs. O projeto de Bruce Wayne criar uma forma de combater o crime não
interferiu apenas na vida de bandidos e políticos corruptos dos quadrinhos,
acabou saltando para a “realidade”.
Em uma reunião de políticos, mafiosos e o comissário de polícia, borbulha discussões acerca do novo figurão que está prejudicando os negócios dos criminosos e alardeando toda população. Eles estão diante de um farto banquete que simboliza o desvio de dinheiro e o império que fora construído com verba ilícita. Então, eis que Batman, utilizando técnicas de medo e as sombras, aparece aterrorizando a todos“Senhoras e senhores, vocês comeram bem.
Comeram a riqueza de Gotham... seu espírito. O banquete acabou. De hoje em
diante nenhum de vocês estará a salvo”.
No desenrolar da história, surge o que seria uma sugestão de Triunvirato de Gotham City, no qual Batman, James Gordon e Harvey Dent trabalham em conjunto na medida em que desempenham suas funções com a finalidade de acabar com a criminalidade doentia da cidade. No fim, um gigantesco esquema de corrupção é desmontado. No entanto, a real parece cair. A luta contra o crime não estava nem perto de chegar ao fim e James Gordon reflete“[...] corre um boato de que o comissário está acertando com o prefeito
os termos da sua demissão. Já estão cogitando o nome de Grogan pra assumir o
cargo. Um sujeito bem pior”. Além disso, há a presença de um sujeito
estranho na cidade “O nome do louco é
Coringa”. Gordon sabe que o fato do horizonte ter sido banido de Gotham
City por causa dos gigantescos prédios, nas sombras é possível encontrar
esperança: “Logo vai chegar um amigo que
pode me ajudar. Deve estar aqui em poucos minutos...”.
Será se
Batman, Gordon e Harvey não deveriam combater as causas da desigualdade social
e econômica da sociedade também? Enfim, seja como for, eles sabem que o combate
ao crime da forma como fazem não fará de Gotham City mudar da água para o
vinho. No entanto, também entendem que é preciso que o maior número de pessoas
contribua a fim de que se possa sonhar, um dia, em um lugar mais justo para se
viver.
"Batman, ano um" é um clássico das histórias do Batman e até hoje é referencial para o cânone do personagem. A importância desse gibi
não fica restrito a fãs do Batman. É uma das histórias que, juntamente com The Dark Knight Returns (1986), Watchmen (1986-1987), Crisis on Infinite Earths (1986),
contribuiu para revitalizar o gênero de super-heróis nos quadrinhos. Para os interessados, esse
roteiro foi reproduzido no filme Batman:
Year One de 2011, que é uma animação fiei à história escrita por Frank
Miller e desenhada por David Mazzucchelli. Além disso, há forte influência dessa história em quadrinhos em dois filmes do morcegão dirigidos por Christopher Nolan: Batman Begins de 2005 e The Dark Knight de 2008.
Palavras-chave: Ano Um, Frank Miller, Batman, DC Comics, Modernidade
[1]ALIGHIERI,
Dante. A Divina Comédia. Versão para
eBook, 2003. s/p.
[2]Superman
foi roteirizado e desenhado pelo mestre John Byrne e Mulher-Maravilha foi desenhada
por George Perez, que também escreveu os argumentos, e roteirizada por Len Wein.
[3]YIDA,
Valéria. A cidade de Gotham na novela gráfica Batman: Ano Um. In: Imaginário! – 10 de Junho de 2016.
[4]RHODES, Ryan Indy; JOHNSON, David
Kyle. O que Batman faria? Bruce Wayne como modelo moral. In: IRWIN,
Willian. Batman e a Filosofia: O
Cavaleiro das Trevas da Alma. São Paulo: Madras, 2008. p.119.
[5]A
primeira aparição do Batman foi na revista Detective
Comics 27, criado por Bob Kane e Bill Finger.
Muito bom Leonardo.
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